Admirável Mundo Novo: a distopia de Aldous Huxley

[Cenário: O mesmo café de sempre, numa rua arborizada do centro antigo. Os galhos se agitam com o vento suave de fim de tarde. Zuli Mencordas, 52 anos, escritor de contos do realismo ao fantástico, chega com seu inseparável caderno preto. Araújo, 65, professor aposentado de literatura, já está à mesa, lendo jornal dobrado ao meio e tomando o primeiro gole do cappuccino. A pauta de hoje: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.] *Pode conter spoilers. 

Araújo (sem tirar os olhos do jornal):

Zuli, pontual como um inglês distópico.

Zuli (puxando a cadeira com leveza):

Melhor isso do que atrasado como a revolução da consciência.

[Ambos riem. O garçom se aproxima com familiaridade.]

Garçom:

O de sempre, senhores?

Araújo:

Cappuccino forte, sem açúcar.

Zuli:

Espresso duplo, como a realidade que o Huxley critica.

[O garçom se afasta. Zuli abre seu caderno. As árvores projetam sombras em movimento.]

Zuli:

Releitura difícil essa, viu. Admirável Mundo Novo não é só incômodo — é cirurgicamente incômodo.

Araújo:

Porque desmonta a ilusão mais perigosa: a de que felicidade e liberdade são sinônimos.

Zuli:

Huxley criou uma sociedade onde ninguém nasce, todos são cultivados. As pessoas são condicionadas desde o embrião para aceitarem o que são: Alfa, Beta, Gama, Delta, Epsilon. Sem escolha.

Sem conflito. E por isso mesmo… sem profundidade.

Araújo:

E todos mantidos felizes com estímulos constantes: entretenimento raso, sexo casual, e o tal do soma — uma droga perfeita, que anula o sofrimento sem efeitos colaterais.

Zuli:

É a paz fabricada. Não há guerra, não há miséria. Mas também não há arte verdadeira, religião, filosofia, nem vínculos profundos. A alma foi substituída por uma programação eficiente.

Araújo (refletindo):

É um mundo onde o sofrimento foi erradicado… junto com o significado.

Zuli:

E o mais trágico: as pessoas estão contentes com isso. Foram treinadas para aceitar esse contentamento.

Pensar profundamente virou tabu. Sentir demais virou patológico.

[O garçom retorna com as bebidas. Os dois agradecem com um gesto. O cheiro de café fresco se mistura ao ar limpo da praça.]

Araújo (mexendo a espuma do cappuccino):

E aí temos Bernard Marx, que começa a duvidar do sistema. Mas mesmo ele é um produto do condicionamento. Sua rebeldia é insegura, ambígua.

Zuli:

E depois chega John. O Selvagem. Criado fora do sistema, numa reserva. Filho de uma mulher do mundo civilizado que ficou presa lá.

John leu Shakespeare. Cresceu com tragédia e beleza. E quando entra em contato com o “mundo novo”, não consegue sobreviver emocionalmente.

Araújo:

Porque ele sente demais. E ninguém ali sente.

Ele é uma alma viva numa terra de autômatos felizes.

Zuli:

O livro não precisa de guerra, tortura ou opressão explícita pra ser assustador.

A verdadeira distopia está no conformismo.

No alívio anestésico que impede a dor, mas também impede a transcendência.

Araújo:

É uma crítica feroz à sociedade do prazer imediato, da distração constante. E por isso ainda é tão atual. Mais do que Orwell, talvez. Porque não é o medo que controla as pessoas — é a satisfação programada.

Zuli (depois de um gole do espresso):

E pensar que foi publicado em 1932. Huxley anteviu um mundo onde a verdade não é proibida — só é irrelevante. Onde a liberdade existe, mas ninguém a quer.

Araújo (sorrindo com amargura):

Porque dá trabalho. E quem foi treinado desde o útero a evitar o esforço… rejeita até o direito de escolher.

Zuli:

A pergunta que o livro nos lança não é “e se perdermos a liberdade?” — mas sim: “e se ninguém quiser ser livre?”

[Ambos ficam em silêncio por um instante. Ao fundo, toca um jazz minimalista. Talvez Chet Baker.]

Araújo (erguendo a xícara):

Por isso, meu caro, Admirável Mundo Novo é mais do que um romance. É um aviso.

Zuli:

Um aviso para não trocarmos liberdade por conveniência. Nem verdade por distração.

[Eles brindam com as xícaras. Uma brisa leve move as folhas das árvores. O disco de Chet Baker segue com seu solo melancólico.]

Zuli (após um gole, pensativo):

E tem um detalhe que me fascina. Justamente o personagem chamado de “selvagem” é o único que conhece Shakespeare profundamente.

John cita A Tempestade, Hamlet, Otelo, Rei Lear, Romeu e Julieta — como se cada tragédia shakespeariana fosse uma lente para entender aquele mundo sem alma.

Araújo (com um sorriso lento, balançando a cabeça):

É uma ironia brutal, Zuli. No meio de uma sociedade tecnológica e higienizada, quem carrega dentro de si a poesia, o drama e o peso das emoções humanas é o “primitivo”.

O homem tido como arcaico é o único que compreende o que significa sofrer, amar, desejar com profundidade.

Zuli:

E ele usa Shakespeare para nomear o que os outros nem sentem.

Ele cita Julieta quando pensa em Lenina. Cita Rei Lear diante da loucura coletiva. Cita A Tempestade ao perceber que está cercado de espectros sorridentes.

É um leitor trágico num mundo sem tragédia.

Araújo (encostando-se à cadeira):

No fim, o mais humano de todos é aquele que vive fora da civilização. E isso nos obriga a perguntar: o que é, de fato, ser civilizado?

Zuli (com um leve aceno de cabeça):

Talvez seja ter memória. Ter arte. E sentir dor sem pedir anestesia.

LEIA OUTRA CONVERSA DOS DOIS SOBRE LOLITA 

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Saiba mais sobre o escritor Zuli Mencordas e sua obra, que também critica o imediatismo na busca pela felicidade. AQUI

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