Franz Kafka (1883-1924) foi um dos mais prolíficos e expressivos praticantes do que Virginia Woolf chamou de “a arte humana”. Traduzindo para nossa linguagem trivial, isso significa que, além da obra literária, ele escreveu belíssimas cartas.
No entanto, nenhuma delas supera o nível de emotividade dilacerante que o autor alcançou com a carta de 47 páginas que escreveu a seu pai, Hermann.
Datada de 1919, ela é quase uma autobiografia, porém focada na dinâmica do relacionamento com um progenitor que sempre fora emocionalmente abusivo.
Foi uma explosão de raiva, mas uma explosão à moda de Kafka. A verdade é que sua alma gentil reconstituiu com nitidez impressionante os acontecimentos traumáticos vividos desde sua infância, mas o tom que prevalece nunca é de ira, mas de resignação.
A célebre “gota d´água” que motivou a escrita? O fato de Hermann não aprovar o noivado do filho com Felice Bauer. Essa foi uma desaprovação tão tóxica que o escritor, à época com 36 anos, culpou o pai pelo fim do relacionamento.
As mazelas descritas na carta têm a ver com padrões duplos desorientadores para crianças e desaprovação constante. Em outras palavras, “certo” e “errado” mudavam conforme o humor do patriarca. E o pequeno Franz nunca era bom o bastante para seu pai.
A lista de acusações kafkiana é ainda mais angustiante por coincidir com descobertas psicológicas sobre como nossos primeiros contatos com nossos pais moldam nosso caráter, hábitos emocionais e padrões de conexão subsequentes.
Para quem teve experiências parecidas, seja com a mãe ou com o pai, o efeito da obra pode ser catártico, devastador, reconfortante ou tudo isso, dependendo do momento da leitura.
A linha mais comovente do livro? Se não teme ⚡SPOILERS⚡, aí vai: Kafka manifesta com humildade, mansamente, sua recusa ao perfeccionismo dogmático do tirano:
“Não é, afinal, necessário voar diretamente até o centro do sol, mas é necessário rastejar até um pequeno lugar limpo na terra onde o sol às vezes brilha e onde se pode aquecer um pouco.”
Sim. Isso mesmo que você leu. Perante o pai tirânico que o amedrontava, o gigante da literatura se sentia como uma criatura indefesa que rastejava.
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