Nas célebres “Viagens de Gulliver” (publicadas em 1726), o mestre da sátira Jonathan Swift não nos levou apenas à terra dos pequeninos, que são ridicularizados por suas disputas políticas insignificantes. Esse é só um trecho da viagem, que caiu no gosto dos adaptadores de histórias infantis. Pouca gente sabe, mas Lemuel Gulliver também esteve em Brobdingnag. Lá, a situação anterior se inverte e os gigantes têm que vê-lo com lupa.
Nosso protagonista, que simplesmente não aguentava ficar quieto em casa, esteve até numa ilha voadora e numa versão “literária” do Japão.
No entanto, é na terra dos Houyhnhnms que Swift nos reserva sua crítica mais contundente. Nesta ilha governada por cavalos virtuosos, ponderados e racionais, Gulliver encontra algo chocante. É uma utopia! Uma sociedade ideal, livre das maldades e vícios humanos. E ao contrapor os Houyhnhnms aos Yahoos, criaturas grotescas que parecem gente – e que, não por acaso, representam o pior do ser humano – Swift questiona nossa própria natureza. Em outras palavras, nos convida a refletir se somos de fato civilizados.
As viagens de Gulliver: uma jornada de autoconhecimento
Na pequena Lilliput, Gulliver é tratado com algo que, à primeira vista, parece reverência. No entanto, nada mais é do que medo de sua estatura monstruosa. Já em Brobdingnag, ele se sente como um inseto. E entre os Houyhnhnms, ele se percebe vil em face ao comportamento altivo dos cavalos pensantes. Afinal, é lá que o protagonista confronta sem disfarces sua própria natureza animal. Em outras palavras, Gulliver é constantemente desafiado a repensar seus valores e crenças. Afinal, quem é ele? O que é ele?
Sem spoilers! Gulliver volta para casa e então…
É no retorno do Jonathan Swift que mais nos deleita com sua maestria satírica. Após viver entre cavalos tão sensatos como os Houyhnhnms, a bestialidade dos Yahoos (os seres grotescos que parecem com humanos) já não pode mais ser tolerada. Mas Lemuel Gulliver é um desses seres e seu país, a Inglaterra, é governada por eles!
Como se readaptar a esse mundo? O final é quase tragicômico, o sofrimento de Gulliver é algo patético. E sua “nova aclimatação” ao convívio com gente como ele próprio está cheia de lances divertidos.
Em conclusão, as questões levantadas por Jonathan Swift em “Viagens de Gulliver” continuarão a ter relevância enquanto existirem a hipocrisia, a pompa, a corrupção e a mentira. Ou seja, alguns dos piores traços humanos que Swift ridicularizou sem piedade.
Saiba mais sobre o autor de “Viagens de Gulliver”
Jonathan Swift (1667-1745) foi um renomado escritor anglo-irlandês, cuja obra de maior renome é esta que comentamos aqui, “Viagens de Gulliver”. Nascido em Dublin, Swift foi educado no Trinity College e passou grande parte de sua vida entre a Inglaterra e a Irlanda. Neste segundo país ele mais tarde serviu como clérigo anglicano, eventualmente tornando-se Deão da Catedral de São Patrício. Sua carreira literária destacou-se por sua habilidade em usar a sátira para criticar a política e a sociedade de seu tempo, com obras como “A Modest Proposal” e “The Battle of the Books”.
Além disso, Swift influenciou autores como Voltaire e sua obra continua a ser estudada e admirada por sua sagacidade e precisão crítica.
Por exemplo, no livro “Gênio”(2003), de autoria do crítico literário e professor de Yale Harold Bloom, Swift é apontado como uma das mentes mais criativas da literatura. O volume inclui nomes como Shakespeare, Tolstói, Dostoiévski e diversos outros gigantes.
E por falar em Voltaire, no parágrafo logo acima… Você já leu Zadig?