No conto “Venha ver o pôr-do-sol”, que faz parte de “Antes do baile verde”, a moça se chama Raquel e está no Brasil. Talvez nos anos 70, isso não importa. Ela está naquilo que antigamente se chamava “um lugar ermo”. Há casas pobres e esparsas. Mato crescendo por entre ruas não asfaltadas. E uma cantiga soando ao longe. Crianças brincando por perto. Terrenos baldios e um cara. Tem um cara esperando por ela.
Já o orgulhoso Montresor está em algum lugar da Itália, há séculos. Ele caminha sobre catacumbas. Ele pensa. E conclui que já suportou o mais que podia as ofensas de Fortunato. Mas não as suportará mais. Esse homem ousou ofender seu nome de família – um honrado sobrenome – pelas costas. Foi a gota d ‘água. Ou de amontillado.
Sim, porque “Antes do Baile Verde” (célebre livro de contos de Lygia Fagundes Telles), vamos brindar com esse vinho xerez que faz parte do título de um conto de Edgar Alla Poe, “O barril de amontillado”. A bebida é originário de um local bastante específico da região da Andaluzia, na Espanha. e é ótima, experimente. Aqui está. Beba, beba… Isso! Agora sim, estamos prontos para a festa que organizei, promovendo um paralelo entre duas histórias de dois grandes autores! Não tenha medo. Venha comigo. Só não me dê a mão.
No Brasil, Raquel chega e “o cara” já está lá. Só um maluco como ele pra fazê-la subir uma ladeira enlameada, reclama a moça. E completa ainda que o táxi teve que deixá-la lá embaixo. Ela não gosta dessas “parvoíces”, mas veio assim mesmo.
“— Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me
aparece nessa elegância. Quando você andava comigo, usava uns
sapatões de sete léguas, lembra?”
— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? —
perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. — Hein?!”
O jovem – que talvez não seja tão jovem assim – a pega pelo braço e não se contém ao dizer:
“— Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado. Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?”
Enquanto isso, esperemos a resposta. E meditemos sobre o que significa “cigarrinho pilantra”. É o momento de voltarmos ao passado, onde Montresor jurou vingança, mas de um jeito que ninguém fique sabendo.
É certo que seu desafeto, Fortunato, era um homem forte, mas tinha sua fraqueza: beber bons vinhos. E como bebia! Porém nosso vingativo protagonista também se gaba de entender de vinhos e essa será a isca perfeita para sua revanche!
Os dois se encontram, Fortunato, efusivo, bêbado. O outro, frio. “Comprei um barril de Amontillado!”, proclama afinal Montresor. Seu antagonista dúvida. “Bem, então vamos testar esse vinho!” A ideia parte dele, do odiado, do ofensivo Fortunato. Montresor se esforça na teatralidade. “Luchresi me disse que o vinho é bom… E você não parece muito bem, vejamos isso depois”, murmura ele. “Luchresi? Ele não sabe nada de vinhos!” Indignação. “Vamos, vamos, para sua adega!”, diz Fortunato.
No Brasil, Raquel se dá conta de que o lugar escolhido para o encontro é um cemitério.
“— Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo — acrescentou, apontando as crianças na sua ciranda.”
Este rapaz deve ser maluco; a situação é maluca.
“— Ricardo e suas ideias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura. [já tiveram intimidade para isso. E parece que para muito mais]
— Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos
entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.” Poesia, afinal. Bem, talvez a situação não seja tão ruim assim.
Enquanto isso, na Itália, nos séculos que ficaram para trás, é o detestado Fortunato que arrasta Montresor pelo braço para seu próprio palácio, onde a família Montresor viveu durante séculos. Os criados foram dispensados previamente. Está tudo vazio. Não havia luz elétrica, nossos dois personagens são iluminados por tochas na vasta escuridão e começam a descer até onde está o delicioso vinho, o autêntico, o legítimo vinho da Andaluzia, na Espanha. O amontillado! Mas, para chegar até ele, paredes forradas de ossos humanos. É uma catacumba, afinal, não é? O clima é frio e úmido.
Montresor sugere que talvez fosse melhor Fortunato não descer até o fundo. Não sem antes lhe dar um gole de vinho Medoc para acentuar a bebedeira do antagonista.
E no Brasil… Raquel não se conforma com a ideia de Ricardo.
“— Ver o pôr do sol?”
Afinal, ele a atormentara por dias seguidos, fez com que ela viesse de longe para enveredar por uma buraqueira, “só mais uma vez, só mais uma!” E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério.
Ricardo riu também, afetando encabulamento como um menino pego em flagrante.
“— Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura.”
Pode convidar. Raquel diz que não iria.
“— Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então
pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada… — disse ele, aproximando-se mais.
Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos
poucos inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta.
Não era nesse instante tão jovem como aparentava.
Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.
Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento.” Isso tudo tem algo de sinistro. Quer dizer, a expressão do rosto que muda de forma tão acentuada…
E na Itália, Montresor continua a embebedar o inimigo enquanto descem alumiados por tochas. Qual será sua vingança planejada? Onde está o amontillado?
Eis aí um possível paralelo entre as duas histórias. Alguém conduzindo o outro para lugares vazios. Um, o cemitério. O outro, catacumbas.
Quem vai decidir se há mesmo alguma correlação? VOCÊ, leitor. Pois não trabalhamos com spoilers!
Os livros que contém esses contos são:
Seus comentários são fundamentais! O que achou dos textos? Existe um paralelismo mesmo? Qual? Deixe seu comentário abaixo!
OUTRA SUGESTÃO DE LEITURA: ZULI MENCORDAS POR ELE MESMO
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*os trechos CITADOS não nos pertencem.
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