Menino pega menina

[AVISO IMPORTANTE: esta é uma obra de ficção. O consumo de bebidas alcoólicas é proibido para menores de idade.]

[AVISO 2: Se você estava procurando novos autores, novos escritores ou contos insólitos, chegou ao lugar certo. Leia a narrativa de Zuli Mencordas]

Eu tinha quinze anos. No dia primeiro de maio, infelizmente um sábado. O telefone tocou ao meio-dia. Acordei sobressaltado. Chovia. Inclusive dentro do meu quarto: eu tinha dormido com a janela aberta.
– Alô…
– Má?
– Eu.
– É a Lígia.
– Eu sei. Fala, chuchu.
– Tudo bom? Que ‘cê tá fazendo?
– Estudando matemática… O que que você acha? Eu tava dormindo, pô!
– Tá, eu ligo depois…
– Não, não… Fala, Liginha…
– É… não é nada, não… É que eu vou me mudar pra França…
– Como é que é?- levantei da cama num pulo.
Ela contou a história toda, com todos os detalhes desnecessários, como sempre fazia: seu pai tinha sido transferido, etc, etc… Em resumo: iria embora em quinze
dias. Quinze dias! Mal pude conter minha raiva. Me senti traído, o que era
ridículo. Aliás, naquele momento tudo era ridículo: a chuva, minhas
roupas na cadeira, os posters na parede, os livros espalhados… E principalmente eu, que agora andava de cueca de um lado para o outro no quarto. Devo acrescentar ainda que a
essa altura o carpete já estava encharcado, o que contribuía para tornar a coisa toda ainda mais patética, se é que isso era possível. Não me dei ao trabalho de fechar a
janela.
– Lígia, eu te amo – estive a ponto de dizer, mas não disse…
“Ama… Você é um moleque, nem sabe o que é isso… Mais tarde você vai ter tempo pra
essas coisas… Agora trate de estudar pra ser alguém na vida e um dia
ganhar mais dinheiro do que eu”, me dizia meu pai… E era como se ele me jogasse no chão e me rolasse com o pé, que nem eu fazia com o Tobby. Tobby era o meu cachorro.

OK, pai… Então eu não a amava… Mas conhecia cada traço do seu rosto e era capaz de refazer mentalmente seu retrato, a qualquer hora do dia ou da noite… Eu não a amava, mas mesmo assim passava horas adivinhando as curvas por baixo das calças “bailarina” e das blusinhas displicentes que ela usava… Não a amava, mas sabia de cor cada palavra que ela havia dito desde o dia em que eu a conhecera… Não a amava, mas queria que meu filho fosse a cara dela.
– Dá pra gente se ver hoje?- perguntou Lígia, meio aflita.
– Dá – respondi.
– Quer ir ao cinema?
– Não.
– Quer almoçar aqui em casa?
– Não.
– Quer fazer o quê?
– Não.
– Ihh, ‘cê tá chato, hein?
– Quero andar de bicicleta- disse eu, monocórdio.
– Falô. O céu tá quase despencando lá fora,
Belo Adormecido. Por acaso você já abriu a janela?
– Já. Mas o tempo vai melhorar mais tarde,
você vai ver. ‘Cê vai ficar em casa?
– Vou…
– Tá. Mais tarde eu te ligo, então. Beijo.
– Outro. Mas liga mesmo… Um beijão.


Filha da p*ta. Até a voz dela era bonita.


***
Realmente o tempo melhorou ali pelas duas e meia ou três horas. Liguei pra Lígia e consegui convencê-la a me encontrar às quatro e meia no parque do Ibirapuera, onde sempre andávamos de bicicleta. Me pareceu a despedida ideal, não sei por quê. Ou melhor, sei muito bem porque: o parque num dia nublado como aquele me deixava
terrivelmente melancólico, e uma das coisas que eu mais gostava de fazer
quando estava com Lígia, além de imaginá-la nua e encher a cara, era ficar
terrivelmente melancólico. Pensei nas árvores tristes, nas alamedas vazias, no grande lago cinza, da cor exata dos seus olhos… Enfim, na ocasião aquilo me parecia um programão. Sou um maluco filho da p*ta, eu sei. E eu tinha mesmo que vê-la naquele dia, porque depois ela ia viajar, quer dizer, pelo Brasil mesmo, e ela não sabia nem quando ia aparecer na escola de novo pra dar tchau pra todo mundo, a vida dela de repente estava um rolo desgraçado, visto, passaporte e não sei mais o quê, será que dava pra conseguir tudo em quinze dias? Dava, o pai dela era importante, tinha muita grana… Lígia tinha duzentas coisas pra resolver e além disso, uma de suas avós estava em Curitiba, a outra tinha câncer, e o que é pior, morava no Acre e por aí vai… De novo tive que ouvir todos os detalhes sórdidos.

Nos encontramos às quatro e trinta e cinco em frente à barraquinha de frutas da República do Líbano (hoje em dia não existe mais). Trocamos beijinhos e entramos no parque. Eu não disse nada enquanto pedalávamos, mas nem precisava. Ela
estava excepcionalmente bela e falava sem parar. De repente começou a chover de novo, caiu uma p*ta água. Mudamos as marchas de nossas bicicletas importadas (a dela era melhor que a minha, tinha mais marchas) e corremos feito alucinados na direção da famosa marquise do parque, onde chegamos completamente encharcados. Pensei que Lígia ia ficar brava, mas ela deu risada: “Você é f*da, não sei como é que
ainda entro nessas roubadas” disse ela, me dando um soquinho no ombro. “Nem eu”, disse eu.

Meu Deus, como ela era bonita. Alta, magra, falsa magra, os cabelos compridos molhando a blusa de moletom e o sorriso, o sorriso que era a coisa mais linda do mundo. Porra, quando ela sorria daquele jeito era como se tudo em volta, num raio de uns setecentos mil quilômetros, se iluminasse. Um espetáculo e tanto. E quanto mais ela sorria, mais eu me sentia triste, arrasado…

Não sei bem o motivo, mas comecei a imaginar que aquela merda de marquise ia despencar na minha cabeça.

Depois disso, não me lembro bem do que aconteceu, sei que a chuva continuou, não muito pesada, mas insistente. Estávamos presos ali, dois náufragos no concreto,
ou coisa assim… Não sou muito bom com essas imagens poéticas; Lígia às vezes era. Já que não queríamos sair na chuva e a ideia era andarmos de bicicleta, foi isso o que
fizemos. Resolvemos pedalar até o Museu de Arte Moderna, que ficava no extremo oposto de onde estávamos.

Não tínhamos pressa, aquela marquise escura e deserta parecia agora a única realidade; fiquei olhando pros banheiros sujos e pras lanchonetes de quinta categoria, onde as garçonetes espantavam as moscas, ou vice-versa.

Tive a impressão desagradável (na verdade, acho que quase acreditei nisso, e fiquei com muito medo) que a chuva não ia parar nunca mais e que jamais sairíamos dali, sendo obrigados a passar o resto da vida andando de bicicleta e nos alimentando de coxinha com Coca-Cola. Sei que parece inacreditável, mas na época era assim que as coisas aconteciam comigo. Por dentro, quero dizer… Uma hora eu me sentia absolutamente extasiado contemplando alguns dentes branquinhos, na outra, estava no fundo do poço e pronto pra amarrar a bicicleta no pescoço e me atirar no lago. Dizem que a adolescência é assim mesmo, mas sinto essas coisas até hoje. Quer dizer, às vezes sinto.
– Má…
– Hã?
– Você tá lerdo… Quer parar pra descansar?
– Não, eu tô legal…
– ‘Cê tá com uma carinha… Parece até o Tobby…
Quando ela dizia essas coisas e me olhava daquele jeito eu me sentia
esquisito, tinha vontade de chorar.
– Pareço o Tobby, é? Obrigado pelo elogio – fingi que estava muito irritado.
– Seu bobo – ela esticou a mãozinha na minha direção, mas eu desviei e apertei os freios de repente, dando uma derrapada. Quase cai. Fiquei ali parado. Ela continuou mais uns metros, depois deu meia volta e veio parar bem do meu lado.

Fiquei olhando pra frente, sério. Não ousei olhar pro rosto dela. Ela também não disse nada, só passou a mão no meu cabelo (o que me deu um arrepio na nuca), depois se aproximou do meu rosto bem devagar e me deu um beijo na bochecha. Tremi dos pés à cabeça. Foi simplesmente a melhor coisa que já me aconteceu na vida.


***
Aquele dia chuvoso e estúpido teve que ser arquivado nos porões da minha memória como “O Último Dia em Que Vi Lígia”. Perdi sua partida. O voo dela saía às seis da manhã, num outro sábado. Jurei de pé junto, como diria meu pai, que iria levá-la ao aeroporto, mas na véspera eu tinha estado numa festinha com uma garota, e confesso que bebi demais. Anyway, quando acordei ela já estava sobrevoando o Atlântico… So long, pretty face…

Dos meses seguintes, não me lembro de muita coisa, exceto que enchi a cara regularmente e com um fervor quase religioso, mas isso eu fazia sempre. Com ou sem Lígia.


***
Existe ainda uma outra versão da história da marquise, da chuva e das bicicletas, que não sei se sonhei ou se aconteceu mesmo. Muitas vezes as coisas se embaralham na nossa cabeça e a gente não sabe mais porque é que deu tudo errado, se a gente virou numa curva onde não tinha que ter virado, sei lá, essas bobagens… Certas culturas no Oriente (segundo dizia minha professora de Filosofia, uma velha inteligente, mas muito chata) acreditam que nada existe de verdade (nem chuva, nem bicicletas, nem nada) e que o mundo todo é uma ilusão e estamos sonhando acordados; mas isso já acho uma puta viagem. Na outra versão dos fatos, se é que assim podem ser chamados, eu estava muito mais alegre, quero dizer, na marquise e tudo. O céu e o concreto, era tudo cinza prateado (Cinza Olho de Lígia, como eu dizia pra mim mesmo) , e a chuva não era chuva, mas uma garoa fininha.

Lembro que ela ficou torcendo os cabelos com as mãos para secá-los e eu fiquei assistindo, feliz da vida.

Depois foi mais ou menos parecido, saímos pedalando despreocupados, e eu pensei aquele negócio de ficarmos ali pro resto da vida, etc. e tal, mas ao invés de ficar deprimido fiquei muito contente, porque me dei conta que gostava muito da Lígia, de coxinha e de Coca-Cola. Depois paramos, dessa vez sem derrapagem, e eu falei “vamos apostar corrida?” E ela “vamos”, e eu “não, já sei, tive uma ideia melhor, vamos brincar de outra coisa… ‘Cê lembra daquela brincadeira, ‘menino pega menina’…” E ela dizia que lembrava, e nós dávamos risada, porque só estávamos nós dois ali. E aquilo também foi a melhor coisa do mundo, só que de um outro jeito.
***

Dois anos depois, quando tínhamos dezessete, fiquei sabendo que Lígia se casara na França, grávida.

Pelo menos foi o que me disse Mayra, a melhor amiga dela. Melhores amigas às vezes falam demais, não acreditei na história. Sorri com o canto da boca (minha especialidade; um trejeito grotesco ou meu maior charme?). “Legal”, disse eu. Legal o cacete. Voltei da escola a pé, devo ter andado uns doze quilômetros, eu acho. Gosto de fazer exercício quando estou meio p*to. E eu estava muito p*to.
***
Hoje, tenho quarenta e dois anos e sou advogado. Tenho uma esposa, mas não tenho filhos. São três e meia da tarde, o mês é maio. Está chovendo a cântaros, como diria meu pai. Fecho a porta do escritório e quase jogo a chave fora. Não posso deixar de pensar em Lígia. E também no seguinte: faz mais de vinte anos que não ando de bicicleta. Fato cretino, insignificante, eu sei. Mas é verdade. Fico na janela fumando e olhando para a rua, porque não me ocorre nada melhor para fazer. É em dias assim que me sinto um perfeito idiota.

FIM

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