Miles Davis e Jimi Hendrix: a melhor parceria que não houve

Miles Davis e Jimi Hendrix é um encontro que está descrito de forma emocionante na autobiografia de Miles, que tinha fama de ser grosseiro e falar mal de todo mundo. Até que ponto essa fama se justifica? Devemos entrar nesse mérito? Acho que não. Afinal, meu único propósito desde que digitei a primeira letra deste texto (o M, de Miles) é convencer você a ler a obra. Simplesmente porque é uma das melhores coisas que você pode fazer na sua vida (fora ouvir Davis tocando “It never entered my mind”…)

Para começar, vou contar uma passagem muito bonita do livro e vou tentar não arruiná-la. Se você achar que é SPOILER, pule pra foto do Miles tocando de terno e gravata. Aí tem a história do Miles com Hendrix... Se achar que essa história é mais spoiler ainda… Então o que você está esperando pra comprar o livro? 😉

Antes de tudo, saiba que a primeira coisa que Miles Dewey Davis III (1926 – 1991) se lembra de sua infância é uma chama azul saltando de um fogão a gás que alguém tinha acendido. Com apenas três anos, ele ficou chocado com o som da chama azul saltando do queimador, aquela aparição repentina. 

“É o mais longe que consigo lembrar” – diz ele – “qualquer coisa antes disso é só neblina, sabe, só mistério. Mas aquela chama do fogão é tão clara na minha mente quanto a música.” 

Ele tinha três anos. E viu aquela chama e sentiu o calor dela perto do seu rosto. É quando ele admite que sentiu medo, medo de verdade, pela primeira vez na vida. 

“Mas também lembro disso como uma espécie de aventura, uma espécie de alegria estranha. Acho que aquela experiência me levou a um lugar na minha cabeça onde eu nunca tinha estado antes. A uma fronteira, talvez, de tudo o que era possível.” 

Assim, conclui Davis, o medo foi quase como um convite, um desafio para ir em frente, rumo ao desconhecido. 

E vai além, o que impressiona e muito. Lembrem-se, ele tinha apenas três anos:

“É aí que acho que começou minha filosofia de vida pessoal e meu compromisso com tudo em que acredito, com aquele momento. Não sei, mas acho que pode ser verdade. Que diabos eu sabia de qualquer coisa naquela época? Na minha mente, sempre acreditei e pensei desde então que meu movimento tinha que ser para frente, longe do calor daquela chama.”

Miles Davis

Isso tudo foi por volta de 1929. Corta para os dias de hoje, quando sabemos que Miles Davis foi um dos músicos de jazz mais influentes do mundo. Só aí já reside o valor desta autobiografia, na qual ele é sincero, a ponto de ser até rude. O artista jamais se contém ao relatar com franqueza sua vida extraordinária. E é essa crueza que conduz a leitura com facilidade, mesmo em momentos em que a obra parece uma enciclopédia musical, de tantos nomes citados. A presença de lendas como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, John Coltrane e muitos outros é indispensável, assim como os bastidores de como era conviver com eles.

Davis fala ainda abertamente sobre seu vício em drogas e como o superou. Condena o racismo na indústria musical e na sociedade norte-americana em geral. E fala das mulheres de sua vida.

Betty Davis

Uma delas foi a cantora Betty Davis que o artista reconhece ter sido uma grande influência em todos os âmbitos de sua vida. A moça tinha 23 anos quando se conheceram. Davis era 18 anos mais velho, mas isso não o impediu de absorver as novidades estilísticas e sonoras que a artista trouxe para sua vida. 

Betty (sobrenome original Mabry) apresentou não apenas a música de Jimi Hendrix a Miles Davis, mas também o próprio guitarrista. Ainda segundo Davis, ela estava muito à frente de seu tempo, como se fosse Prince ou Madonna – só que nos anos 70! Seu jeito de cantar peculiar e letras sexualmente agressivas podem ser conferidas no YouTube até hoje. 

Segundo uma piada que ouvi uma vez, atribuída ao escritor Luís Fernando Veríssimo, “gosto de jazz do tempo em que os músicos tocavam de terno e gravata até a fase em que o Miles Davis começou a usar sandália”. 

Bom, foi Betty que convenceu Miles a adotar um visual mais “estiloso” e usar roupas “modernas”. E não duvido nada das sandálias! O casamento durou apenas um ano, mas o estrago – no guarda-roupa – estava feito! 😂

Miles Davis e Jimi Hendrix face a face

Um dia o empresário de Hendrix ligou pedindo para que Davis mostrasse ao guitarrista como ele compunha sua música. Primeiramente, Hendrix gostava do hoje mega clássico Kind of Blue. Por isso pensava em adicionar elementos de jazz ao seu próprio som. Além disso, gostava da maneira como Coltrane tocava com todas aquelas camadas de som, e achava que tocava guitarra de forma semelhante. Para completar, Hendrix disse também que tinha afinidade com a maneira como Davis tocava trompete. Depois dessa conversa toda, os dois gigantes da música começaram a se encontrar. Betty realmente gostava daquele tipo de música avant-garde – e Miles relata em seu livro que achava que a moça gostava de Hendrix fisicamente também. Mesmo assim, manteve a amizade. 

Davis descreve Hendrix como “um cara realmente legal, quieto, mas intenso”. E o guitarrista não era nada do que as pessoas achavam que ele era. Em outras palavras, o Hendrix de carne e osso era exatamente o oposto da imagem selvagem e louca que apresentava no palco. 

E um detalhe interessante é que um dia Miles teve que sair para gravar e deixou algumas partituras para discutir com Hendrix na volta. Bom, não havia nada para discutir na volta: o maior guitarrista do mundo não sabia ler partituras. Davis nem se abalou. Não fazia diferença, o cara era rápido, pegava tudo no ar, tinha ouvidos perfeitos e intuía a música. 

Segundo Miles, eles conversavam, e o jazzista às vezes começava a soar técnico demais algo como, ‘”Jimi, sabe, quando você toca o acorde diminuto…” Então aparecia um olhar perdido no rosto de Hendrix e era como se Davis lembrasse “Ops! Esqueci!” Então ele ia tocar o que estava explicando no piano ou no trompete. Hendrix entendia na hora. Tudo de ouvido.

Para o guitarrista, a teoria era desnecessária. 

A parte mais emocionante do relato acontece quando Davis mostra discos gravados em parceria com Trane [John Coltrane, obviamente] indicando o que eles faziam musicalmente. Depois Miles percebia como Hendrix começava a incorporar aquele jazz aos álbuns dele. 

Nas palavras de Davis: “Era demais. Ele me influenciou, eu influenciei ele, e é assim que se faz música boa mesmo. Todo mundo mostrando alguma coisa pro outro e aí indo pra frente.”

Concluindo, é claro que poderia ter saído um baita disco dali, aliás, mais do que isso, um som revolucionário, quem sabe até com vocais de Betty. Mas, infelizmente, todos sabemos que a história não acabou bem para o genial guitarrista, que morreu em 1970, com apenas 27 anos. 

Miles Davis e Jimi Hendrix: réquiem

Este é apenas um dos episódios da vida extraordinária de Davis que escolhi destacar e envolve UMA de suas mulheres. Tem muito mais histórias fascinantes no livro, que é realmente uma autobiografia envolvente, por vezes até chocante, mas nunca aborrecida.

O artista que concebeu algumas das obras musicais mais instigantes do século XX e nunca se acomodou em um só estilo, está nessas páginas por inteiro, com suas contradições, triunfos, derrotas, humores variados… Enfim, toda gama de experiências, erros e acertos que provam que até os gênios são humanos.   

O volume conta com uma discografia concisa e 32 páginas de fotos que tornam esse mergulho íntimo ainda mais revelador.

E a base de tudo? Não podemos nos esquecer nunca! 

A música! Nas palavras do próprio Miles…

“Escuta. A melhor sensação que já tive na vida – vestido – foi quando ouvi Diz [Dizzy Gillespie] e Bird [Charlie Parker] juntos em St. Louis, Missouri, em 1944. Eu tinha dezoito anos e acabara de me formar no Lincoln High School.” 

Um livro indicado para fãs de música, fãs de jazz e fãs (por que não?) de boas histórias.

Adquira o seu: https://amzn.to/46EPHs2

#comcomissões

MAIS JAZZ AQUI

Compartilhe aqui

Deixe um comentário