Oi, você chegou ao blog do site Dicas de Livros. Não, eu também não sei muito bem como isso aconteceu, mas estou feliz ao ver você por aqui. Ainda mais porque este é o primeiro post. E escolhi o tema sabedoria oriental pra ser o começo de tudo! Mas tudo o quê?
Bem, o título do site já diz, queremos oferecer Dicas de (Bons) Livros, mas pensei neste espaço em particular como uma área mais livre, menos pautada pela rigidez estrutural e pelo encadeamento lógico de um artigo ou resenha. Hã? Em bom português: aqui falo do que quero, do jeito que quero, na hora que quero. É aquela parada do fluxo de consciência do James Joyce, só que um pouco menos doida.
[Aliás, você sabia que antes de “Ulysses”, a obra-prima do gênio irlandês ser publicada, as pessoas NÃO pensavam em “fluxo de consciência” joyciano, mas sim em parágrafos logicamente encadeados, tudo certinho? Em outras palavras, foi ele que introduziu essa loucura na cultura ocidental. I kid you not! (well, maybe a little)].
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Agora, antes de tudo, pra gente se situar e sem mais digressões, segue uma historinha de sabedoria oriental. Leia, depois comento.
A sabedoria do monge que encostou na garota
“Antes de mais nada, saiba que dois monges viajavam juntos quando encontraram uma moça que hesitava em atravessar um córrego. Naquela época e naquele lugar, um sacerdote estava proibido de encostar em mulheres. Mas, ignorando essa proibição, um deles pegou a moça gentilmente no colo e atravessou o riachinho com ela.
Chegando ao outro lado, a jovem agradeceu ao monge e eles prosseguiram sem ela. Muito tempo depois, o segundo monge, que havia assistido à cena sem emitir palavra, não se conteve e disse: ´Aquilo que você fez, carregando a menina no colo… Aquilo foi errado.´ Ao que o primeiro sabiamente respondeu: ´Deixei a moça lá atrás. Você ainda a está carregando?´”
Este belíssimo relato, que não vou ficar interpretando porque acho que nem precisa, foi um dos primeiros contatos que tive com o pensamento oriental, lá pelos meus 20 anos. Infelizmente não me lembro exatamente de onde saiu a história. Talvez de “9 Stories”, de J.D. Salinger? (Sim, aquele mesmo, o autor do ótimo “O apanhador no campo de centeio”). Eu teria que reler os nove contos, algo que farei em breve, de forma mais metódica, organizada, científica, até, para nossa seção de resenhas. Mas aqui no blog, como já disse, a ideia é outra.
Você, que talvez tenha sido criado no Ocidente, como eu, a esta altura deve estar se perguntando: “OK, mas que sabedoria oriental é essa?”
Então, antes de enveredar pelas “9 Histórias de J.D. Salinger”, mencionadas acima, uma sucinta definição se faz necessária…
Sabedoria oriental 101
Agora, você vai saber que a sabedoria oriental, em sua essência, busca a harmonia entre o indivíduo e o universo (não é pouca coisa, hein!?).
Para tanto, se atém a princípios como:
- Equilíbrio: entre yin e yang, interno e externo, ação e contemplação. Ou, em detalhes:
O Yin representa:
- A escuridão
- O feminino
- O passivo
- O frio
- A suavidade
- A terra
Já o Yang representa:
- A luz
- O masculino
- O ativo
- O calor
- A dureza
- O céu
- Outro princípio da sabedoria oriental é a conexão com a natureza, com os ancestrais e com o todo.
- O presente: existir no momento presente, livre de apegos e expectativas.
- Autoconhecimento: jornada de compreensão profunda de si mesmo.
- Transcendência: do egoísmo e das limitações, buscando a paz interior e a realização.
Essa sabedoria se manifesta em diversas tradições, como Confucionismo, Taoísmo, Budismo, Yoga e Ayurveda, que se propõe a abrir caminhos para uma vida mais plena e significativa (e sem coaches). 😂
Assim, chegamos à nossa literatura ocidental novamente! Favor dirigir-se ao próximo tópico no qual faremos as devidas conexões.
J.D. Salinger e a sabedoria oriental
Em primeiro lugar, o conto mais famoso do “9 Stories” é “A Perfect Day for Bananafish”, que inspirou até uma música do The Cure. No entanto, o que mais me impressionou foi “Teddy”. E este tem mais explicitamente a ver com a sabedoria oriental.
A história se passa num navio de cruzeiro. O garoto que dá título ao conto é aquilo que costumamos chamar de “criança prodígio” e tem apenas 10 anos. Todavia, apesar da pouca idade, o menino é versado em filosofias orientais como o Budismo Zen e a reencarnação Vedanta. É mole? E mais: ele conhece pessoalmente e se corresponde frequentemente com eminentes professores universitários, com quem se envolve em debates complexos.
O enredo todo é fascinante, mas não trabalho com spoilers, então não quero falar muito, só digo que vale a pena ler o livro. Uma característica do Teddy, porém, que vale a pena mencionar, é seu desapego emocional. Tanto que ele critica a poesia ocidental por estar “transbordando de sentimentalismo”. E cita um haikai como parâmetro poético de conteúdo e estrutura:
“Along this road goes no one, this autumn eve”
Esse poema, isso que parece uma mera frase solta, é lindo e nunca me saiu da cabeça. Essa solidão, esse vazio. Ninguém indo pela estrada; quem está observando a cena que não é cena, pois não há quase nada ali pra ser visto? Isso tem tudo a ver com a sabedoria oriental: desapego, paz interior. E para falar disso, tenho que falar um pouco de haikais.
A sabedoria oriental na poesia minimalista
Para começo de conversa, o nome original daquilo que chamamos de haikai no Brasil é haiku. Trata-se de uma forma poética sem rima composta por 17 sílabas distribuídas em três linhas de 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente.
Esse gênero poético surgiu na literatura japonesa durante o século XVII. Como costuma acontecer na Arte de modo geral aqui no Ocidente, também no Oriente já se registrava de forma semelhante o fenômeno da “corrente estética contrária”. Por exemplo, analogamente, do lado de cá, a simplicidade e agressividade da música punk foram uma reação aos excessos de virtuosismos do rock progressivo. Em síntese, o haiku surgiu como uma reação concisa às tradições poéticas demasiadamente elaboradas.
Uma espécie de busca pelo despojamento que conduz à sabedoria? Talvez, talvez.
O fato é que no começo o tal do haiku era muito restrito tematicamente e focava sempre numa descrição objetiva de uma das estações do ano. Objetivava-se uma resposta emocional bem definida, implícita. Essa forma poética só mostrou a que veio lá por (1603–1867), no chamado período Tokugawa. Foi aí, meus amigos (guardem bem esse nome!) que o mestre Bashō elevou o hokku (haiku? haikai?) a uma forma de arte altamente refinada de poesia.
Bashō começou a escrever o “novo estilo” de poesia na década de 1670, enquanto estava em Edo (que hoje é Tóquio). Um de seus primeiros haikus/haikais é o seguinte:
“Num galho seco um corvo pousou;
Anoitecer no outono.”
Bonito, né? OK. Mas o negócio é o seguinte… desde já, como somos ocidentais e por aqui a gente não estudou direito a evolução da coisa (nem este texto se propõe a isso), vamos chamar tudo de haikai mesmo, desde os de Millôr Fernandes, aos de Paulo Leminski, passando até pelos de Jack Kerouac. Acho melhor assim. Do contrário, vai ficar tanto nome que eventualmente vai confundir até o Google, beleza?
Bashō: poesia minimalista e sabedoria oriental
Nosso mestre Bashō acabou viajando por todo o Japão, e suas experiências se tornaram o tema de seus versos. Sua poesia em poucas linhas era acessível a uma grande parcela da sociedade japonesa, e esse apelo amplo ajudou a estabelecer a forma poética como a mais popular do país.
Após Bashō, e particularmente depois da revitalização do haikai no século XIX, sua gama de assuntos expandiu-se além da natureza. Mas o haikai permaneceu sendo a arte da sutileza: expressar muito e sugerir mais com o menor número possível de palavras.
Outros mestres notáveis de haikai foram Buson no século XVIII, Issa no final do século XVIII e início do XIX, Masaoka Shiki, no final do século XIX, e Takahama Kyoshi e Kawahigashi Hekigotō no final do século XIX e início do século XX. E recentemente, no início do século XXI, dizia-se que havia um milhão de japoneses que compunham haikai sob a orientação de um professor.
Entretanto, se você não é japonês (e daí, né?), nada o impede de tentar fazer o seu poema e deixar aí nos comentários. Leremos com prazer. 👍
O fato é que a popularidade dessa forma poética fora do Japão expandiu-se muito após a Segunda Guerra Mundial. Hoje, haikais/haikus são escritos em uma ampla variedade de idiomas.
Alguns exemplos de haikais surgidos no ocidente:
“Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos”
Millôr Fernandes (Brasil, é claro)
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“pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando”
Paulo Leminski (Brasileiro de Curitiba)
“All day long wearing
a hat that wasn’t
On my head”
Jack Kerouac (nascido americano, cidadão do universo)
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A sabedoria de J.D. Salinger
Voltando ao livro do Salinger, logo ao abrir a obra, você se depara com a seguinte epígrafe:
“Conhecemos o som de duas mãos que aplaudem.
Mas qual é o som de uma mão que aplaude?”
Embaixo, está escrito, enigmaticamente: “Koan zen”
“Koan? Que é isso?”, perguntará você, caso já não seja um iniciado nas nuances da sabedoria que vêm daquela parte do mundo.
Primeiramente, Koan, no Zen Budismo do Japão, é uma declaração ou pergunta paradoxal e sucinta usada como disciplina de meditação para novatos, principalmente numa seita chamada Rinzai. O esforço para “resolver” um koan tem a intenção de esgotar o intelecto analítico e a vontade egoísta. É uma espécie de esvaziamento. Isso, de acordo com o Zen, prepara a mente para gerar uma resposta apropriada intuitiva. Cada exercício desse tipo constitui tanto uma experiência Zen quanto um teste da competência do novato. À primeira vista, pode parecer desafiador para nossa mente racional, mas a ideia é essa mesmo.
Um exemplo característico desse estilo é o que vimos lá em cima (a mão que aplaude). Outras vezes, porém, o koan é formulado em forma de pergunta e resposta, como na pergunta “O que é Buda?” e sua resposta, “Três libras de linho.” [Hã?] 🤔
Outro que me agrada muito é o seguinte:
Noviço: “Mestre, qual o sentido da vida?”
Mestre: “Você já comeu seu arroz?”
Noviço: “Já!”
Mestre: “Então lave a tigela”.
Interprete você. Mas pra mim o sentido da vida é que ela está aí para ser vivida. Talvez de forma imediata, intuitiva.
Afinal, como escreveu magnificamente o próprio Bashō:
“Sitting quietly, doing nothing, Spring comes, and the grass grows, by itself”.
Concluindo, às vezes, a vida simplesmente acontece.
A SEGUIR: AKIRA KUROSAWA E O MESTRE DA LITERATURA QUE VIROU NOME DE PRÊMIO
EXTRA: muito além do ZEN e do MAL!
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