João do Rio: “Dentro da noite”

Nesta narrativa memorável de João do Rio, “Dentro da noite”, encontramos um Rio de Janeiro que tem pouco ou nada a ver com a imagem cantada ao longo de décadas pelos poetas. Para começar, nada de praias. Estamos longe delas, em um trem de subúrbio às onze da noite, no começo do século XX. E por uma dessas coincidências da vida, um cavalheiro chamado Justino encontra seu amigo Rodolfo num vagão, mas há algo estranho nesse companheiro, algo perturbador, mas indefinível. 

Rodolfo afinal confessa suas angústias e desejos relacionados a Clotilde, a mulher que ama. Para Justino, nenhuma novidade, quer dizer, em parte. Toda sociedade carioca já havia notado o rompimento súbito do noivado entre Rodolfo e a moça. Mas qual seria o motivo? De certo Rodolfo é que era um canalha, diziam todos.

Justino, sem saber muito bom o que dizer, deixa escapar que Rodolfo tinha um ar desvairado, como se tivesse chorado ou bebido. 

“Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso”, diz ainda Justino. Curioso é um bom eufemismo para uma cena que talvez lhe parecesse francamente bizarra. 

Aqui a influência poderia ser traçada diretamente até Edgar Allan Poe, os elementos estão aí, um trem célere rasgando a noite, uma alma desajustada, um manto de morbidez que parece inescapável, a chuva torrencial… mas a paleta de nosso escritor carioca talvez seja um pouco mais leve. Nem por isso menos inquietante, pelo contrário. Afinal, Rodolfo confessa ao amigo que luta contra um vício hediondo: 

“Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim.”

A Clotilde de João do Rio

[SPOILER -> SE PREFERIR, PULE PARA “QUEM FOI JOÃO DO RIO”]

Rodolfo por fim não consegue mais se conter. Ele descreve sua luta interior, que envolve momentos de prazer e dor. Ele extrai gotas de sangue da amada. Um caráter sádico o consome. A única diferença entre ele e o sádico propriamente dito é o que faz toda a diferença: a culpa. 

Essa narrativa singular aborda temas como o amor, a obsessão e a degeneração moral. Com sua prosa ágil e cativante, João do Rio parece reafirmar um antigo tema filosófico. De fato, há no ser humano uma luta interna entre desejo e razão, e a complexidade das emoções humanas vai das paixões mais virtuosas até as obsessões mais obscuras. 

A atmosfera perturbadora sutil na obra de João do Rio

Quem foi João do Rio (1881-1921)?

João do Rio

Sob o pseudônimo de João do Rio, Paulo Barreto (1881-1921) imortalizou o Rio de Janeiro do início do século XX, com suas crônicas ácidas e vibrantes. Cronista, romancista, crítico de arte e figura controversa, ele deixou um legado literário riquíssimo, agora reunido em três volumes pela Coleção João do Rio.

Coleção João do Rio

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A obra de João do Rio, marcada por um estilo híbrido entre literatura e jornalismo, revolucionou a crônica brasileira. Ao sair das redações e mergulhar nas ruas, becos e vielas da cidade, ele revelou um Rio de Janeiro desconhecido para muitos, contrastando a opulência da elite com a miséria das favelas.

Com uma escrita vívida e irreverente, o autor retratou a alma carioca, denunciando as desigualdades sociais e imortalizando personagens e acontecimentos que marcaram a época. Sua paixão pela cidade, pela vida e pelas artes transparece em cada palavra, tornando suas crônicas atemporais.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras com apenas 29 anos, João do Rio era um homem complexo e contraditório. Sua vida boêmia, marcada por excessos e paixões, contrastava com sua aguda percepção social.

A Coleção João do Rio resgata textos inéditos e raros, permitindo que novas gerações conheçam a obra desse grande escritor. 

João do Rio teve ainda dois contos incluídos entre os melhores do século XX na coletânea da editora Objetiva, que traz também Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar e muitos outros grandes autores nacionais. Um dos contos é este “Dentro da noite” e o outro é “O bebê de tarlatana rosa”. 

LEIA A SEGUIR: O QUE DRUMMOND ACHAVA DE MACHADO DE ASSIS?

Você pode se surpreender!

E caso ainda esteja chocado com o caso acima, recomendamos adquirir conhecimentos com o mais célebre discípulo de Freud: JUNG. 

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